Câmera lenta



Gente, hoje tivemos exercício de câmera lenta. Isso era uma marca do Hugo. Em um primeiro momento é preciso compreender como o termo é amplo e cheio de referências.

Em primeiro lugar, há a relação com o cinema. Em conversas com Hugo, ele me dizia que pensava toda a obra como um filme na cabeça dele. Ele ia montar uma peça e imaginava tudo dentro de um espaço específico. Sem esse espaço não havia o que fazer. Para mim ele exemplificava que sua relação com espaço era tanta que sua casa mesmo era revisada, como uma encenação. Hugo me dizia que com certa frequência mudava a disposição dos móveis de sua casa, para mudar o espaço. Logo quando comecei a trabalhar com ele, escrevi sobre a relação de Hugo com o espaço. O espaço cênico era seu universo, criar espaços no espaço era materializar o imaginário. {v. o texto " A discussão da ideia de espaço em Kant e seu contraponto na teatralidade, a partir de comentário de uma montagem de Hugo Rodas" Link: http://webartes.dominiotemporario.com/performancecorpopolitica/textosespacoperformance/marcus.pdf ou https://www.academia.edu/43419274/A_discussa_o_da_ideia_de_espac_o_em_Kant_e_seu_contraponto_na_teatralidade_a_partir_de_comenta_rio_de_uma_montagem_de_Hugo_Rodas }

Esse filme na cabeça e a ideia de espaço se encontro na cabeça de um diretor encenador que pensa como um diretor de cinema. Na prática cinematográfica clássica (não digital) "Câmera lenta"é um efeito, "slow motion" no qual se manipula o tempo de apresentação dos fotogramas. Ao se diminuir a velocidade de apresentação, altera-se uma expectativa de correlação entre as cenas em movimento filmadas e disponibilizadas na tela e as cenas em movimento no coditiano. Mas, contraditoriamente, para se produzir esse efeito, é preciso filmar, registrar a cena com maior aceleração e depois projetar com menor taxa de aceleração. Por exemplo: ao se realizar o efeito de "slow motion", filma-se no lugar dos normais 24 quadros por segundo em 48 quadros por segundo. Depois de filmado, projeta-se em 12 quadros por segundo. Assim, na tela vemos algo lento, devagar resultado de algo que foi espichado e encolhido. Com a digitalização, pode-se usar o material filmado e em pós-produção inserir mais quadros, multiplicar, esticar a duração do material. Assim, as imagens diversas são renderizadas - coladas, reunidas - formando um contínuo.

Em francês, o termo "slow motion" é traduzido como "Ralenti", próximo ao italiano "ralllentare", e seu gerúndio "rallentando", termo musical para desacelerar. Lembrar que em música há ainda "ritardando". Ambos se ligam à manipulação mais com sutis diferenças. Enquanto "rallentando"se refere a redução do som até sua extinção, "ritardando" é uma deliberada ação em atrasar,retardar o som.

No caso nosso, em cena, embora em um primeiro plano esteja a manipulação da ação dentro de seu horizonte temporal, o foco não é o tempo em si, e justamente a própria ação, ou o nexo entre o intérprete com a ação, e disso, no caso de uma performance assistida, o simultâne e diverso nexo do público com o intérprete em ação.

Vejamos o intérprete. No lugar de uma realizar uma ação comum, que é performada com frequência, solicita-se que ele distenda a duração entre o início e a conclusão dessa ação. Assim, contra o simples e habitual ato de se levantar é imposto um antimovimento, uma contração. Há pois uma tensão entre cumprir o programa de uma ação e distender o intervalo entre início e fim de uma ação.

Zeami (1363-1443), dramaturgo japonês, propunha o princípio jo- ha - kyu, uma tricotomia presente desde a macroestrutura ou distribuição de peças em um programa até as ações de um ator. Assim, no lugar de uma visão unificada de um ato, temos a sua cíclica distribuição entre conjugadas forças de inicialização (jo), interrupção/quebra, ruptura(ha) e finalização (kyu). [v. GIROUX, Sakae M. Zeami: cena e pensamento nô, São Paulo, Perspectiva, 2012]

As forças para prover um movimento são sustentadas por um movimento contramovimento de interroper esse impulso inicial. Esticar o tempo de conclusão da ação é examinar as camadas das ações, sua heterogeneidade.




"Pensando cuidadosamente sobre o assunto, pode-se dizer que todas as coisas no universo, boas e más, grandes e pequenas, com vida e sem vida, todas participam do processo de jo, ha e kyu." Zeami.




Segundo o grande ator Ioshi Oida:

"Embora o teatro japonês seja fortemente estilizado em termos de interpretação, muitas das convenções estão, na verdade, baseadas numa observação apurada dos padrões naturais. Zeami notou um desses padrões, lima estrutura rítmica chamada jo-ha-kyu. (A palavra jo significa literalmente "começo" ou "abertura ", ha significa "intervalo" ou "desenvolvimento", e kyu guarda o sentido de "rápido"ou "clímax") Nessa estrutura, começa-se lentamente, daí gradual e suavemente acelera-se em direção ao pico. Depois do pico, ocorre geralmente uma pausa para depois reiniciar-se o ciclo de aceleração; um outro jo-ha-kyu. Este é um ritmo orgânico que pode ser facilmente observado nas mudanças do corpo ou no ato sexual, em busca do orgasmo. Quase todo ritmo das atividades físicas tenderá a seguir esse padrão se deixadas à sua sorte.

Este ritmo [o-ha-kyu é completamente diferente da ideia ocidental de "começo, meio efim ",já que este tende a produzir uma série de "degraus" em vez de uma sutil aceleração. Além do mais, a noção de "começo.meio e fim " normalmente se refere apenas à estrutura global da peça, enquanto que Jo-ha-kyu é utilizado como base não só para todos os momentos de uma apresentação, como também para sua estrutura como um todo. No teatro japonês, toda peça tem jo-ha-kyu , todo
ato e toda cena tem jo-ha-kyu, e toda fala individual terá seu próprio jo-ha-kyu interno. Até o gesto mais simples como levantar um braço começará com uma certa velocidade e terminará num ritmo ligeiramente mais rápido. O grau de aceleração irá variar; algumas vezes fica muito claro para o espectador, outras, a mudança no tempo é praticamente imperceptível, mas está sempre lá. A noção de progressão nunca está ausente. Ocasionalmente a superfície da ação ralenta, ou pára completamente, de modo que não há um jo-ha-kyu visível; entretanto, o desenvolvimento do jo-ha-kyu está ainda acontecendo, dessa vez internamente.

O ator invisível. tradução Marcelo Gomes.  São Paulo: Beca Produções Culturais, 2001. p. 62-63














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